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Se correr o bicho pega, se ficar...


(este texto contém spoilers)

me·do

s.m.

Psicol Estado psíquico provocado pela consciência do perigo, real ou apenas imaginário, ou por ameaça.


Na obra A Interpretação dos Sonhos, Freud nos informa que “os sonhos não são enviados pelos deuses e não são de natureza divina, mas que são 'demoníacos', visto que a natureza é 'demoníaca' e não divina. Os sonhos, em outras palavras, não decorrem de manifestações sobrenaturais, mas seguem as leis do espírito humano, embora este é verdade, tenha afinidades com o divino.”


Em Corra!, do diretor Jordan Peele, os sonhos, ou pesadelos, como queira, destituídos de qualquer caráter premonitório, nos coloca diante de fantasmas sociais do passado que assombram nosso presente. E a obra, que tem como gênero uma certa atmosfera de terror onírico, nos convoca à vigília face ao inebriante convite para cochilarmos ao aconchego das falsas promessas de democracia racial do mundo pós-colonial. O filme traz uma nova roupagem para relacionamentos inter-raciais, apropriações de potencialidades/talentos e solidão, e os revisita de modo provocador.


Historicamente, como indica Frantz Fanon em Peles Negras e Máscaras Brancas, “o negro acusado de ter dormido com uma branca era castrado. O negro que possui uma branca era um tabu para seus semelhantes.” Tal ameaça tem povoado o imaginário tanto de escravocratas, quanto de abolicionistas, de republicanos como de democratas. É bom lembrar, por exemplo, que o nome do escritor James Baldwin foi parar nos arquivos do FBI em função de seus escritos sobre relacionamentos inter-raciais, que também figuravam como tema de segurança nacional.


Vale ressaltar que tanto Fanon quanto Baldwin não condenaram a possibilidade de tais relacionamentos, mas se propuseram a difícil tarefa de pisar neste campo minado. E o diretor Jordan Peele também embarca neste desafio e, assim como Baldwin em Remember This House, nos oferece carona numa estrada rumo ao Sul. Ou seja, um caminho de re-encontro com os mais profundos pesadelos estadunidenses que se metamorfoseiam em discursos raciais contemporâneos pretensamente refinados.

O protagonista do filme, Chris Washington, vivido com maestria por Daniel Kaluuya, é um homem negro de muitas camadas. Suas lentes de fotógrafo captam com perspicácia os códigos de conduta da branquitude. E ele aposta nas promessas do antirracismo democrata e se envolve em um relacionamento com a Rose Armitage, uma mulher branca. A docilidade do humanismo fingido de Rose e seu empenho em defender o namorado do racismo cotidiano nos faz pensar no mito reatualizado da princesa Isabel, ou no caso da realidade norte-americana, Mrs. Shelby em A Cabana do Pai Tomás.


Enquanto Chris transita entre os mundos dos negros e dos brancos a partir da sua lente sagaz, do seu olhar de artista, o ofício de sua namorada Rose permanece apenas sugerido: ela seria tão somente uma serial black lover, caçadora de homens negros? A metáfora da caçada ilustra o racismo que alimenta a vida cotidiana. E o cervo se torna o Outro do homem negro que deve ser domesticado ou des-subjetivado. O pai de Rose, no alto da sua polidez cínica e politicamente correta, não pode anunciar seu desejo de exterminar a raça negra e então transfere seu ódio para a figura do cervo. Perder para Jesse Owens nas eliminatórias para as Olimpíadas de Berlim em 1936 tornou-se o trauma insuperável da família Armitage, mas são cínicos e se fartam de ambiguidade no trato racial: são cosmopolitas, votam em Barack Obama e até admitem que são clichês quando falam dos empregados negros.

Chris também faz um jogo duplo, pois ao mesmo tempo que parece aliviar a falsa culpa dos brancos, procura vincular-se com as personagens negras a seu redor. E no caso dos empregados da casa, lhe ocorre algo que foi bem descrito por Fanon: “Incapaz de se integrar, incapaz de passar desapercebido, ele vai conversar com os mortos, ou pelo menos com os ausentes”. Georgina e Walter são os negros que intrigam pela não-normalidade, pela des-subjetivação própria dos mortos-vivos, dos zumbis que povoam o imaginário estadunidense ou dos ancestrais negros escravizados. Conseguimos captar ambos os corpos, mas nos escapa quais almas os habitam. Mas ainda que Chris compartilhe o pertencimento racial, fica claro os abismos entre eles.


Rod Willians, amigo de Chris e policial negro do setor de transportes num aeroporto, é o elemento cômico do filme. As teorias conspiratórias, apesar de risíveis e sensacionalistas, se mostram uma fonte de cuidado: ele não se conforma com a narrativa de mais um homem negro que some e ninguém se importa. Rod não é erudito, mas é bem atento ao que significa ser negro estadunidense, munindo-se da sabedoria popular para sobreviver cotidianamente, desconfiando das modernidades no campo das relações inter-raciais. E na condição de amigo, é também o pisca-alerta que sinaliza o perigo quando Chris não se atenta o suficiente para o que lhe aponta a intuição.

Mas Chris está longe de ser um desavisado. Nada escapa ao seu olhar que ousa encarar os desafios de ser um negro no mundo dos brancos. Neste sentido é possível estabelecer uma confluência entre Chris e o próprio diretor Jordan Peele. Nesta metalinguagem, a câmera está apontada para o racismo próprio da indústria do entretenimento. E assim conhecemos a alma hollywoodiana de dentro e a partir de seus próprios arsenais, denunciando-a. Desse modo Jordan Peele torna-se uma testemunha que transita entre mundos de diferentes cores. Lembrando que James Baldwin aponta que as fronteiras entre testemunhar e atuar são finas, porém reais; e que parte da responsabilidade das testemunhas é movimentar com a maior liberdade possível para escrever a história. E assim, uma câmara em mãos negras pode se mostrar um armamento poderoso no enfrentamento às violências e alienações raciais com o simples disparar de um flash.


Mas ao mesmo tempo em que Chris/Peele mira, é também mirado. E de dentro do olho do furacão, é preciso resistir para não se deixar engolir. A branquitude ao redor não dissimula que quer tomar os talentos; e assim até elementos ordinários da vida cotidiana como uma xícara de chá e uma colher bastariam para domesticar a vida e a alma negra. Depois de acessar as dores e o isolamento do protagonista negro com métodos rebuscados de tortura psicológica que se transvestem de requinte analítico, a branquitude também se atreve a lançá-lo em um oceano de terrores inconscientes. Enquanto Chris assiste, diante de uma tela, ao insuportável espetáculo em que foi inserido, os conceitos de entretenimento, narcóticos e cárcere se aproximam como num “requiem para um sonho”. Não por acaso o cárcere de Chris se dá numa sala de TV, instrumento que apresenta uma noção assustadora do que seja realidade para os norte-americanos. E não basta alienar ou torturar, há a necessidade de manter cativo. E assim a escravidão se atualiza, comercializando e transplantando corpos e saberes. A noção de anedonia proposta pela feminista Bell Hooks no texto Eating the Other ajuda a entender uma postura que, diante de um vazio de experiências, procura aspectos das experiências de negritude para consumí-las numa espécie de canibalismo cultural. Ou nas palavras da autora: “É precisamente o anseio por conseguir esse prazer o que tem permitido ao ocidente branco sustentar uma romântica fantasia do “primitivo” e a concreta procura por um paraíso primitivo real, seja este local um país ou um corpo, um continente escuro ou uma carne escura, percebida como uma perfeita encarnação dessa possibilidade.”


Quando os brancos vão encarar suas próprias vidas sem se alimentar da alma negra? O american way of life não garantiu a tão sonhada felicidade e ainda vendeu falsas promessas de ascensão liberal ao negros, acorrentando-os a seus compatriotas brancos. Como indica Baldwin, a intensa pobreza emocional nos EUA, acaba fazendo da imaturidade uma “virtude” nacional. O terror da vida cotidiana que afasta o toque humano e fomenta fracassos na condução da vida privada também orienta a condução da vida pública e a relação entre brancos e negros. E a violência segue tão familiar quanto a torta de maçã.


Pretas Dramas é o encontro entre a roteirista Carolina Gomes, a cineasta Renata Martins e a psicóloga Viviane Angélica, três mulheres negras que se reuniram para pensar, refletir e produzir crítica e dramaturgia.

 Pretas dramas 

 

Pretas Dramas é o encontro entre a roteirista Carolina Gomes, a cineasta Renata Martins e a psicóloga Viviane Angélica, três mulheres negras que se reuniram para pensar, refletir e produzir crítica e dramaturgia.

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