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O Beijo no Asfalto: Faces da Sociedade do Espetáculo, da Intolerância e do Linchamento


A peça O Beijo no Asfalto do gigante Nelson Rodrigues em 1960, é um caricato, porém necessário retrato de como o nefasto casamento entre a polícia e a mídia pode devastar a vida de um pacato cidadão. A alcova do delegado Cunha (Gustavo Madeira) é o grande balcão que despacha arbitrariedades e atrocidades vendidas pelo inescrupuloso jornalista Amado (Otávio Muller); que tem nas páginas do sensacionalista Última Hora, o canal de polenização de calúnias convertidas em pós verdades. O filme homônimo da peça marca a estréia do ator Murilo Benício na direção, que ousa colocar toda a equipe numa grande mesa redonda, convidando a platéia para um apurado debate sobre o caráter e posicionamentos ideológicos das personagens. Fundindo história e processo, em completa reverência ao texto de Nelson Rodrigues, Benício nos apresenta a trama, os bastidores, bem como a passagem do texto por um elenco afinadíssimo, conduzida pelo director de teatro Amir Haddad. Assim assistimos ao drama de Arandir, o bancário que num impulsivo de compaixão beija a boca de um homem prestes a morrer depois de ser violentamente atropelado por um ônibus na Praça da Bandeira no Rio de Janeiro. A cena é testemunhada por transeuntes, pelo jornalista Amado e por Aprígio (Stênio Garcia), sogro de Arandir, que corre imediatamente para informar a filha Selminha (Débora Falabella) sobre o ocorrido; enquanto Arandir presta depoimento e vai sendo transmutado de testemunha a criminoso. A narrativa acusatória é tecida pelo delegado e o jornalista que embaraça irremediavelmente a ordinária vida de um simples bancário. Assim, seu ninho de recém-casado é desfeito pela dúvida e condenação do sogro, da esposa e da vizinhança (destaque para Fernanda Montenegro). Encontra apoio incondicional apenas em sua cunhada, a jovem Dália (Luiza Tiso), secretamente apaixonada por ele.


O argumento do texto vai sendo suturado por violências e tabus que acimentam a crônica da vida cotidiana. Além do mote inicial, que é a criminalização da homoafetividade; O Beijo no Asfalto põe em cena o debate sobre abuso policial, mídia criminosa, violência contra a mulher, aborto e incesto. Mas alguns detalhes quase passam desapercebidos, como a corriqueira face branca da classe média carioca, encarnada em funcionários liberais, burocratas e patroas.

Apesar do absurdo e indisfarçável traço de inércia que retrata violências e desigualdades em contornos quase insuperáveis; a adaptação de Murilo Benício traz um elemento surpresa ao escalar Lázaro Ramos para emprestar sua pele a Arandir. No debate pós exibição do filme na 41a. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo no dia 20 de outubro, no Cine Itaú Cultural, Murilo Benício conta que a escolha de Lázaro Ramos aconteceu quando ambos contracenaram na novela Cobras e Lagartos, exibida pela Rede Globo em 2006. O que teria despertado a atenção de Murilo Benício foi a bondade, compaixão e sensibilidade emanadas de Lázaro Ramos, que o aproximaria assim da figura do Arandir. Benício contou um pouco mais sobre como se tornaram amigos, da partilha de momentos singelos como o nascimento dos filhos do casal Taís Araújo e Lázaro Ramos. Mas o que Benício deixou de responder de fato foi a primeiríssima pergunta feita pela platéia: Como a cor de Lázaro Ramos acrescenta e complexifica camadas do personagem Arandir? É bom lembrar que não é a primeira vez que O Beijo no Asfalto é adaptado para as telas de cinema. Em 1981 Bruno Barreto faz uma leitura fílmica com flagrantes pinceladas de pornochanchada. E apesar da gritante diferença entre as duas propostas, as atuações de Lázaro Ramos e de Nei Latorraca, que também deu vida a Arandir, mantém uma incrível semelhança. Ambos nos ofereceram ingênuos bons samaritanos que ousaram beijar outro homem sem premeditar quão caras seriam as consequências deste gesto de suposta caridade. Mas ao estampar nas telas um burocrata negro e casado com uma figura querida da nossa dramaturgia, o espectador tem uma rica oportunidade de deslocamentos de imaginários sobre supostos papéis designados a pretos e brancos no Brasil, ao passo que a atuação de Nei Latorraca na versão de Bruno Barreto, apesar da sensibilidade, só diz mais do mesmo, fazendo chover no molhado.


Curiosamente a peça foi uma encomenda que a atriz Fernanda Montenegro fez ao Nelson Rodrigues no começo da década para a companhia Teatro dos Sete, nos idos anos 60. O dramaturgo se baseou numa tragédia real em que um repóter de O Globo instantes antes de falecer pediu um beijo a uma mulher que o socorrera. Nelson Rodrigues como bom provocador que era, mudou o sexo de quem concedera o polêmico beijo. Passados mais de cinquenta anos, Murilo Benício ousou mudar a cor de Arandir. Ainda que coloque a escolha de um ator negro simplesmente na conta da amizade, certamente contribuiu para a escrita de novas narrativas nas páginas da dramaturgia brasileira, embora não tenha completa dimensão da importância do seu gesto. (Mas entre racistas esclarecidos e anti-racistas desinformados, prefiro estes, se por acaso existirem).

De todo modo, profícuas amizades é certamente uma fortuna; aliás, boas parcerias, e companheirismo é outro bastidor que transborda na tela. A direção de fotografia de Walter Carvalho, a condução da leitura do texto pelo diretor Amir Haddad e a atuação de companheiros de estrada e da vida como Stenio Garcia, Otávio Miller, Lázaro Ramos e Débora Falabella são exemplo disso. A participação de Fernanda Montenegro é sem dúvida a cereja do bolo. Conhecedora do texto desde o seu nascedouro, ela conta detalhes históricos, além de oferecer uma pequena, mas primorosa representação do arquétipo da vizinha alcoviteira que povoa nosso folclore. Murilo inclusive destacou em sua fala o quanto a riqueza dessas relações e a experiência profissional de sua equipe favoreceu seu trabalho de direção, facilitando sua primeira viagem como marinheiro que arriscou conduzir a nau. Assim, o filme é um também uma confraternização entre amigos que dão as mãos a Murilo, numa ciranda que faz deste filme uma obra coletiva. Uma rica ode à metalinguagem, com encadenamentos cíclicos e harmoniosos entre cinema-leitura-palcobastidores.

É refinada produção da sétima arte celebrando o teatro, a fotografia e música (que inclusive a traz a belíssima assinatura de Ney Matogrosso).



Mas ele também mostrou herança e erudição. Uma referência notória é que Murilo Benício leu Nelson Rodrigues seguindo a pista aberta pelo ator e diretor Al Pacino na releitura que este fez de Shakespeare, resultando no docuficção Looking for Richard. Além de Shakespeare e Nelson Rodrigues o filme de Benício nos evoca também a acidez crítica de Pier Paolo Pasolini. Em Teorema o diretor italiano retrata o desfacelamento de uma família burguesa ensejado pela presença de um visitante, que assoma como um Cristo Redentor, ainda que tenha faces de anjo exterminador. Em O Beijo no Asfalto, Arandir é também um estranho no ninho e alijado do seu tempo. Como Cristo foi bode expiatório, e como o forasteiro de Teorema, foi também o destinatário dos desejos sexuais reprimidos pelo moralismo burguês. Mas para além da intolerância homofóbica, o linchamento de Arandir na pele de Lázaro Ramos não nos permite esquecer que o racismo é também engrenagem do capitalismo, sobretudo na sociedade brasileira.


Assim O Beijo no Asfalto ao desnudar fraturas da sociedade brasileira encarnando-as num corpo negro, abre possibilidades para debates sobre o imaginário brasileiro a respeito das masculinidades negras. O racismo sedimentado no inconsciente coletivo reveste o corpo negro de peças estigmatizadas, como a hipersexualidade falocêntrica, a exacerbação da ideia do corpomúsculo/des-cerebrado, marginalizado, perigoso ou cheio de ginga e malandragem. Dessa perversidade de pensamento resulta que o homem negro é a parcela da sociedade brasileira que mais morre, vítima de violências físicas e simbólicas; além de ser a injustiçada face que superlota o sistema carcerário.

A personagem de Arandir ao tentar corromper esses estereótipos atravessa uma perigosa zona do imaginário coletivo e acaba sendo fatalmente atingida para além do desfecho desenhado por Nelson Rodrigues. Ainda é difícil conceber um homem negro que seja solidário, trabalhador, esposo fiel, que faça uma mulher branca feliz, que resista aos encantos da cunhada e que não esteja ao bel dispor do sogro. A negação destes inconfessáveis resulta na mistificação de um bom samaritano, ainda que caluniado; mas mesmo com voz mansa e cabeça baixa, reúne forças para não se resignar à triste sina de lazarento. E sendo um importante militante no campo da representatividade negra, Lázaro Ramos têm plena consciência dos desafios que Arandir representa para o deslocamento dos sentidos de ser homem negro dentro e fora das telas. Sua atuação é um importante passo na direção de novos olhares e lugares a serem ocupados por corpos negros.


Texto escrito por Viviane A. Pistache. Preta das Minas Gerais, com mania de ter fé na vida. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutoranda em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP).

Pretas Dramas é o encontro entre a roteirista Carolina Gomes, a cineasta Renata Martins e a psicóloga Viviane Angélica, três mulheres negras que se reuniram para pensar, refletir e produzir crítica e dramaturgia

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Pretas Dramas é o encontro entre a roteirista Carolina Gomes, a cineasta Renata Martins e a psicóloga Viviane Angélica, três mulheres negras que se reuniram para pensar, refletir e produzir crítica e dramaturgia.

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