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Não queremos falar sobre Joaquim!


Quando o protagonismo não é dado, ele é tomado. É assim que a personagem Preta, vivida pela atriz luso-diásporica Isabél Martins Zuaa Muntage se apresenta no filme Joaquim. Com o seu andar e olhar firmes, Preta, em suas primeiras cenas, anuncia à que veio: Se não consegue juntar-se a mim na luta, eu luto só.


De fato é importante questionarmos como o alferes conhecido como Tiradentes decidiu se rebelar contra a coroa portuguesa. E para tecer a gênese de uma biografia ao mesmo tempo pré e anti- heróica, o diretor mergulha nas profundezas psicológicas de José Joaquim da Silva Xavier, que tinha aspirações de carreira e sonhava em ser português até encontrar a face da corrupção que vinha a galope nos lombos da nação.


O filme quase se afoga nas intrépidas cachoeiras de Diamantina. . Com o excesso da câmara na mão, o sacolejar das imagens nos leva a uma vertigem desnecessária com a confusão entre as jornadas de busca por si e por pedras preciosas empreendidas pelo protagonista.


Talvez a intenção seja a de nos convencer, com a dedicada atuação de Júlio Machado, que Joaquim é um bravo sertanejo guimarense. Mas cansa vê-lo curvado insanamente ante a bateia no leito do rio, e até nosso olhar sente-se ressequido com a aspereza de tanto cascalho para pouca pedra rica.


E nessa empreitada, fica à beira do caminho a história da Preta que se torna Zuaa. Isso é resistência: mesmo fora de cena, ela é a espinha que sustenta a trama. É necessário ressaltar que, diante das parcas fontes histórico-documentais, o filme aposta numa ficção na qual coubesse um romance entre uma mulher negra escravizada e um branco brasileiro.


A princípio a ideia é indigesta como a tese da democracia racial brasileira semeada em Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Mas o diretor conseguiu escapar das armadilhas deste roteiro clássico e Preta dinamita a cama que a subjulga. Mesmo em situação de escravidão, seu corpo obedece aos seus desejos e às suas regras. A única cena de sexo entre Preta e Joaquim salta aos olhos: no início, ele está aos pés dela, seu rosto coberto pela saia, e Preta conduz a cena. Ela explode a representação oficial das mulheres negras escravizadas nas narrativas hegemônicas e surradas desde o período colonial e subverte-a. E é esta alma aguerrida que literalmente faz a cabeça de Joaquim.


Enquanto destila com desenvoltura sobre a conjuntura política e econômica da Colônia, Preta tira piolhos da cabeça do alferes. Mas não se enganem, ela é muito mais que a escrava esclarecida que passa remédio na cabeleira daquele que viria a ser o mártir cristão da insurreição mineira. Ela espera que ele seja mais que um branco bem-intencionando e omisso diante da escravidão que a acorrenta. Depois de raspar a cabeça de Tiradentes com uma faca bem amolada, pelo reflexo da lâmina, ela prenuncia: é preciso saber lutar, pois do contrário te corto a cabeça. E com as armas que tem, Preta desaparece na escuridão a caminho da liberdade. Emasculado por sua covardia, Joaquim parte na missão de encontrar pedra de valor que comprasse aquela que acredita ser apenas a sua amada escrava fugida.


A busca por Preta torna-se um lampião que conduz a noite densa da jornada pelos Sertões Proibidos na sede de ouro. Mas Joaquim não estava só, pois na tropa havia tanto oportunistas interessados em sugar a riqueza da terra quanto o índio e o africano que protagonizaram uma das cenas mais belas do filme: o canto de dois povos. Um alento ante algumas notas desafinadas do roteiro…


E Zuaa ainda triunfaria em cena uma outra vez, adiantando-se aos pífios esforços do Joaquim. É ela quem o encontra e dessa vez como uma líder quilombola, de cabeça raspada, peito livre e, portanto, senhora do seu destino e que se nomeia: “Preta é nome de cor. Meu nome é Zuaa!”. Ao se colocar como indivíduo, com nome próprio, ela ao mesmo tempo se particulariza e demonstra a força de seu lugar de liderança e resistência.


Quando Joaquim tenta alguma investida sexual, Zuaa é contundente e anuncia que homem branco nunca mais a tomaria como mulher. “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”, disse Luís Gama. A morte do “senhor”, não se dá apenas no campo físico e sim, no subjetivo. “Preta” mata toda e qualquer ideia de senhorio e se transforma em Zuaa. Uma guerreira que conduz a própria história, que reconhece suas raízes ancentrais. Joaquim desce do quilombo transformado. Ele entendeu que ela é a própria revolução; assim resplandece o despertar da sua consciência política e as palavras do poeta e do padre finalmente incendeiam seu peito.

Ela em sua condição de mulher, negra e escravizada, dá um salto de representação ao se mostrar como aquela que já é revolucionária perante um homem ainda em construção político-social. Ela já é ao passo que Joaquim ainda é uma promessa de futuro. Mas, ao mesmo tempo que nos mostra a força e resistência que vem dos quilombos, o clímax nos apresenta o ninho da fidalguia inútil e cínica, que escraviza mãos negras até para embalar a rede ou tirar os anéis dos dedos nobres enquanto a Conjuração Mineira é tramada.

Zuaa, que sequer aparece no cartaz de divulgação do filme, ocupa o protagonismo na tela. Se Joaquim perdeu a cabeça, ela, por sua vez, pode ter sido a Dandara responsável pelo processo de libertação de milhares e milhares de corpos negros aprisionados. Quanto tempo ainda teremos que esperar até termos holofotes sobre revoluções negras como a Conjuração Baiana? Este é um dos muitos importantes capítulos da história brasileira que merecem orçamento e destaque nas nossas salas de cinema.


Também conhecida como Revolta dos Alfaiates, foi protagonizada por quatro negros que lideraram um movimento inspirado na revolução haitiana. E assim como Tiradentes, os alfaiates Manuel Faustino dos Santos Lira e João de Deus do Nascimento, e os soldados Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas também foram esquartejados ao lutarem por um projeto republicano e iluminista. Como anuncia a cabeça do Joaquim na cena de abertura, em típica ironia machadiana, a história deste herói possui uma profusão de narrativas inflacionadas.


Portanto já é tempo de falarmos das muitas Zuaas, pois não faltam Joaquins no panteão nacional. É importante destacar que Zuaa não é a única mulher negra no filme. Há ainda uma liberta, que junta moedas para comprar a liberdade do seu próprio marido João, vivido pelo ator luso-guineano Welket Bungué. Uma mulher que não aparece em imagem, mas que se materializa em ideia. Ela reivindica ao representante da baixa patente da Coroa, o direito ao afeto e à construção familiar.

À guisa de conclusão, o filme é sobre a tentativa de desconstruir o mito ao mesmo tempo em que provoca o público e suspende questões sobre protagonismo e representatividade: a ausência das narrativas com protagonistas negras e complexas se dá pela ausência histórica dessas personagens, ou pela ausência da vontade política dos seus criadores? É a eterna “Tostines” da representação, cuja resposta tem sido dada ao longo da história, seja na reiteração dos estereótipos, ou no processo de invisibilização histórica que contempla narrativas contadas a partir de um único ponto de vista.


Pretas Dramas é o encontro entre a roteirista Carolina Gomes, a cineasta Renata Martins e a psicóloga Viviane Angélica, três mulheres negras que se reuniram para pensar, refletir e produzir crítica e dramaturgia.

 Pretas dramas 

 

Pretas Dramas é o encontro entre a roteirista Carolina Gomes, a cineasta Renata Martins e a psicóloga Viviane Angélica, três mulheres negras que se reuniram para pensar, refletir e produzir crítica e dramaturgia.

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