Quando Madame Satã visitou São Paulo
Foto: Guto Muniz
Um dos átrios do coração da Praça da Sé certamente é o monumental Centro Cultural da Caixa, soturnamente talhado a mármore negro. Um robusto cofre do tesouro nacional, onde o fantasma de Getúlio Vargas despacha em seu gabinete luxuoso, com vistas para as populações desabrigadas à sombra da Catedral.
Semelhantemente ao gigante bíblico Nabucodosor, a Caixa Cultural tem a cabeça de ouro, braços de prata, pernas de bronze e pés de barros. E eis que surge Madame Satã como a pedrinha de Exú que abala estes fundamentos. Desse modo ela abre a câmara do inferno e nos oferece assento para contemplarmos a ópera dos condenados desta terra.
Sob a luz pomba gira, numa atmosfera inebriante de perfume de pemba, ela entra em cena gingando os quadris e baforando gargalhadas que a um só tempo denuncia e passa a rasteira no que tem sido o destino das gentes pretas. Cada pérola do colar que lhe adorna o colo é uma cicatriz que testemunha todo grão de areia que violou as conchas que guardam vozes silenciadas desde o fundo do oceano.
Inferno perene das centenas de povos pretos a bordo dos navios negreiros e camburões. Mas Madame Satã é o malandro da viela que conhece o crime, a virtude e a fome de amor que fermenta a vida na noite dos becos, e tem no gozo a sua fonte de riqueza.
Ela faz da capoeira, da navalha e do cravo vermelho as armas que a protegem dos preconceitos que insistem em profanar sua beleza e ousadia de ser nem homem nem mulher, mas uma entidade bem acima do nosso entendimento.
Para quem prefere o caminho mais fácil e empobrecido, já dizia a bíblia que “seu teu olho te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti. Melhor te é entrar na vida com um só olho, do que tendo os dois, seres lançado no fogo do inferno”.
E Madame Satã convoca à corajosa decisão de encarar a vida com os dois olhos, e não com a desvalentia de confiar um olho aos falsos profetas que pregam a violência ao próximo. Mas ela não está sozinha.
E neste domingo um mar de gente excluída do paraíso marchou orgulhosamente pela Paulista, passando pela Consolação rumo a uma República laica e democrática. Madame Satã ofereceu abrigo à multidão sob sua longa saia vermelha, como a cigana madrinha da festa.
O dia sorriu ensolarado, a fé e a esperança bailaram nas curvas do arco-íris. Mas na contramão da luta pelo direito de ser e de viver, o brigadeiro Luiz Antônio aguardava com o impaciência o momento de obrigar o indefeso exército verde e amarelo a empunhar vassouras para cobrir de cinza a alegria do dia.
E seguindo os rastros de Doritos Rainbow o asfalto foi banhado a eucalipto, num esforço de desinfectar a cidade do germe da contestação política. Mas a resistência cheira à Dama da Noite.
E em sua passagem meteórica por São Paulo, Madame Satã enfeitiçou nossas almas com seu encantador sotaque mineiro. Assim, vozes potentes se encontraram para agigantar o coro que canta a morte e a vida severina dessa gente que merece viver e amar como outra qualquer no planeta.
Este texto é dedicado à Primorosa, linda flor travesti que tem o corpo bordado de estrelas; Rainha Nagô digna de uma coroa de direitos no peito.
Texto escrito por Viviane A. Pistache. Preta das Minas Gerais, com mania de ter fé na vida. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutoranda em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Pretas Dramas é o encontro entre a roteirista Carolina Gomes, a cineasta Renata Martins e a psicóloga Viviane Angélica, três mulheres negras que se reuniram para pensar, refletir e produzir crítica e dramaturgia.