Praça Paris - A dança das cadeiras nada invisível
O cinema nacional tem passado por transformações profundas, vide o Festival de Brasília que, após semanas da sua edição de 50 anos, reverbera até hoje. Os diretores e roteiristas, que outrora ocupavam a sela e mantinham seus pés confortáveis nos estribos e cavalgavam em campos bucólicos sem serem incomodados, têm sido questionados em todos os campos do processo produtivo, sobretudo, no das representações.
O novo filme de Lucia Murat, “Praça Paris”, premiado na última edição do Festival do Rio (Melhor atriz e Direção), pode ser considerado o marco do esgarçamento das narrativas hegemônicas e das tentativas caricatas no campo das representações negras no cinema. O filme é complexo, desde o nome até o último frame. A sinopse anuncia a história de Camila (Joana Verona), mas a narrativa filmada é reapropriada por Glória (Grace Passô), ascensorista da UERJ que subverte o lugar de objeto e assume o lugar de sujeito da própria história. “Praça Paris”, relíquia do final da Belle Epoque, situado no bairro da Glória, com belos jardins inspirados nos de Versalhes, contrasta com a efervescência dos elevadores da UERJ e com a realidade dos morros cariocas. Na ‘Praça”, não há negros, na universidade e no morro, sim!
Camila é portuguesa, mas poderia ser uma jovem brasileira, cineasta ou cirandeira da esquerda caviar. Em todos esses campos do saber, para essas pessoas, mulheres como Glória não são pessoas, são parte de projetos que as destituem de humanidades, mas as transformam em narrativas, teses e, através delas, acumula-se prêmios e reconhecimento intelectual.
É na tentativa de não perpetuar esse lugar que Grace Passô e Glória se fundem. A primeira, atriz e dramaturga experiente; a outra, uma mulher negra que compreende as violências históricas e sabe que não será respaldada pelas instituições, seja ela familiar, acadêmica, cinematográfica ou policial. E, nesse processo de sororidade, elas se fundem e afrontam a direção, o roteiro e quem mais se colocar entre elas. Elas, em Glória, assumem as rédeas da narrativa e cavalgam sem olhar pra trás. Os campos bucólicos, que outrora abrigavam trotes lentos de cavalos mancos e cansados, se tornam terreno fértil para trotes potentes e plantio fértil.
Sozinha e sem ter pra onde ir, Camila se perde em si e, além de expor o racismo estrutural existente em nossa sociedade, mata! São atitudes como as dela, validadas pelo Estado genocida, que permitem o extermínio da juventude negra. Assim como a Camila, atônita, acuada em resumo, ficou o público branco na sessão de estréia do filme na 41º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Era como se, em anos de passividade na autocrítica na cinematografia nacional, eles, o público, em sua maioria brancos, tenham se visto representados como parte estruturante e mantenedora das violências física e simbólicas contra a população negra e empobrecida. Eram, ali, imagem e semelhança da figura frágil da terapeuta descendente de colonizadores que pretendia entender a subjetividade do colonizado e falar por eles, sem eles!
Ainda que seja no campo simbólico, há uma dança das cadeiras nada invisível. Os lugares marcados têm sido disputados por várias frentes. Não há uma cadeira no lugar. É certo que, mais do que sentar, há a urgência de criar novos assentos e estabelecer novas relações e diálogos honestos, junto ao setor audiovisual que se mantém branco e inquestionável.
Neste sentido, não há tanta alternativas para as “Camilas”, “Fernandos” e “Danielas”: ou eles reveêm seus lugares e seus privilégios, ou serão expostos e encastelados junto aos seus, anacrônicos e engessados. Não há como ignorar as vozes vindas e os movimentos ascendentes vindos das “Glórias” que se multiplicam em “Grace Passô”, “Suelis”, “Djamilas”, “Taíses”, “Marias”, “Lázaros” e muitos anônimos.
E, através dessa relação complexa entre narrativas reintegradas e ressignificadas em “ Praça Paris”, Grace Passô cavalga e trota no ar em absoluto. Dos palcos para as telas, e das telas para onde ela quiser.
Texto escrito por Renata Martins. Cineasta, roteirista e pós-graduada em Linguagens da Arte pela Universidade de São Paulo (USP). Idealizadora da websérie "Empoderadas" e atualmente roteirista-colaboradora de "Malhação - Viva a Diferença".
Pretas Dramas é o encontro entre a roteirista Carolina Gomes, a cineasta Renata Martins e a psicóloga Viviane Angélica, três mulheres negras que se reuniram para pensar, refletir e produzir crítica e dramaturgia.